Ficção preenche espaços vazios da memória

Bicho Geográfico, romance do escritor Bernardo Brayner, editado pela Cepe com apoio do Funcultura, é uma narrativa memorial amparada por fotografias de álbum de família  

Ao contemplar fotos do álbum de família surge a ideia de escrever um livro. Não de memórias, mas de ficção. Fotografias ajudam a chacoalhar lembranças, porém nem tudo o que passou é registrado pela câmera ou pela memória. Bernardo Brayner, autor do romance Bicho Geográfico - editado pela Cepe Editora com apoio do Funcultura -, disse que havia muita coisa que ele não recordava dos tempos de criança. "Então eu poderia preencher alguns pontos do livro com ficção", conta. E a própria fotografia também pode ser um elemento narrativo de ficção, pois é colocada não somente como imagem documental. "O medo de ser deixado para trás pelas próprias memórias move o bicho geográfico, riscando na pele que escava um mapa das metamorfoses de seu hospedeiro. Bicho geográfico é um livro que nos oferece uma vasta condensação de materiais evocados, com seus lindos lugares de retorno, tão dolorosos quanto libertadores", descreveu o crítico e romancista José Luiz Passos no prefácio do livro, que será lançado dia 2 de junho, às 19h, em live no canal da Cepe Editora no YouTube, com participação do autor, do professor de Letras da UFBA, Antonio Marcos Pereira, e mediação do editor do jornal literário Pernambuco (Cepe), Schneider Carpeggiani. 

 

"Bicho Geográfico é uma espécie de álbum de fotografias antigas transformado pela lente da

memória e da ficção. Bernardo Brayner mergulha no próprio passado familiar em uma narrativa que se alimenta das lacunas e perturbações que ela mesma cria", resume o editor da Cepe, Diogo Guedes. Em quatro meses escrevendo à noite e escolhendo fotos, Bernardo concebeu o que ele define como um memorial. "Precisava escrever algo depois da morte dos meus pais. É um livro sobre a ausência, sobre o que a memória e a ficção podem alcançar como reconstrução de uma vida, como preenchimento de vazios, de esquecimento", explica. 

Ao libertar a fotografia de sua "prisão documental", o autor manipula a objetividade fotográfica em prol da narrativa, que pode parecer autobiográfica a princípio mas na verdade é o que ele chama de autoficcional. "É um recurso no qual eu me coloco como observador e, assim, posso descrever e narrar o que há e o que não há nas fotos. Procurei, com estratégias documentais e autoficcionais, avaliar o impacto dessa memória pessoal, familiar, se contrapondo à memória do Brasil, examinando suas fronteiras e, também, as fronteiras entre texto, legenda, comentário", completa Bernardo.

Falar de memória, do passado, nunca esteve tão atual nesse momento em que governos de extrema direita querem apagar o que passou. "Esse momento de apagamento do passado foi um dos motores de escrita do livro. À medida que envelheço há uma curiosidade maior pela lembrança e, claro, uma preocupação com o futuro. Por amor à memória, trago no rosto o rosto do meu pai, como disse (o poeta insraelense) Yehuda Amichai (1924-2000). A nossa vida é um aprendizado de como conviver com fantasmas", reflete Bernardo. 

Tempo, morte, velhice, sonho são outros temas que passeiam pelo romance de Bernardo, como o bicho geográfico embaixo da nossa pele. "Esses são os temas principais da minha ficção e provavelmente de qualquer uma. E são muitas as razões para que esses temas sirvam como matéria-prima da narrativa. Esses são os segredos das nossas vidas. É o que não sabemos. É o nosso diálogo particular com os mortos", diz o escritor. Em trecho da obra, Bernardo fala que um livro se faz de camadas de tudo o que lemos. "Um dos livros que mais me marcaram foi W Ou A Memória Da Infância, do francês Georges Perec (1936-1982). No livro, o autor alterna memórias e ficção sobre uma ilha onde se cultua o esporte. Os capítulos ficcionais sobre a ilha resgatam um texto que ele escreveu na infância nos anos 1930. Não é à toa que a ilha imaginária se aproxima muito da Alemanha Nazista durante os Jogos Olímpicos de 1936". 


Leia trechos do livro: 

 

Li em algum lugar quando criança que é impossível

ler em um sonho. Desde então tenho sonhado

com livros que têm suas páginas passadas tão

rapidamente que fica impossível ler.

 

(...) ela se voltava para mim e acrescentava que talvez

exista um pouco de nós ou muito em outras pessoas.

Alguns traços que sobrevivem em alguém com quem

vivemos. O jeito de rir sem emitir som. A maneira

como tocamos a barba ou o cabelo. A mão que

coloca a roupa em ordem. Os dedos que brincam

com as chaves no bolso. Tudo isso sobrevive nessa

genética etérea ou fantasmal. De forma que somos

a soma de vários desses fantasmas sobrepostos.

Só nos falta saber se essas camadas nos deixam

mais densos ou mais vaporosos. E mesmo quando

morrermos passaremos para frente essa genética-

-fantasma através dos nossos descendentes que serão

descendentes de muitos numa ramificação infinita.(...)

 

Os dentes do menino serão todos substituídos

em breve. Suas memórias serão substituídas por outras. O carro será substituído por um mais amplo e veloz. As plantas morrerão. O cabelo do menino vai cair e suas roupas vão ser cada vez maiores e compradas com desleixo. A careta será substituída

pelo seu rosto sério, meu amigo. Pelo seu rosto

sério e seus lábios finos, quase inexistentes. Esse

rosto transpassado de um espectro, monstro ou

dinossauro você perdeu para sempre


Lançamento do livro Bicho Geográfico, de Bernardo Brayner

Quando: 2 de junho

Onde: Live no canal da Cepe Editora no Youtube

Horário: 19h

Participantes: Bernardo Brayner, Antonio Marcos Pereira e Schneider Carpeggiani

Preço: R$20 (livro impresso); R$8 (e-book)






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