Rubem Fonseca: um escritor muito à frente de sua época, mas muito fiel à sua época

 

Fonte: Divulgação

Rubem Fonseca nos deixou em 15 de abril de 2020 com um legado único e parte do cânone da literatura brasileira e mundial

Quando digo que Rubem Fonseca é único na Literatura brasileira, não estou apenas sendo clichê ou parcimoniosa: foi um escritor muito à frente de seu tempo, embora muito fiel à realidade de seu tempo.

Contista - gênero em que mais se destacou -, romancista e roteirista, utilizava o que muitos chamam de um "estilo seco", direto, verossímil mesmo quando dotado de certa fantasia ou de uma aura idílica. Retratou com ironia e sagacidade ímpares, especialmente nos contos, o país em que vivia, suas mazelas e, por vezes, suas riquezas. Foi um delator, e a realidade que exprimiu na literatura desde os anos 1960 pode ainda hoje ser reconhecida. - o Brasil pouco mudou, e Rubem era um visionário do ser humano.

Rubem Fonseca nãos nos poupou" (ainda bem!) de detalhes sórdidos - digo ainda bem para quem prefere a literatura realista, ou crua, até impressionante. Se procura algo monótono ou açucarado, não leia Rubem Fonseca. Se quer diálogos enfeitados e encaixotados, não leia Rubem Fonseca. E, se não deseja se olhar no espelho lendo Rubem Fonseca, vendo uma imagem disforme e talvez nova da natureza humana onipresente, não leia Rubem Fonseca.

Um mestre dos contos

Mineiro de Juiz de Fora, nascido em 11 de maio de 1925, falecido em 2020, Rubem Fonseca estudou Direito (como tantos escritores, por que será? Cito Clarice Lispector e quase todos os do século XIX no Brasil) na Universidade do Brasil, conhecida hoje como Universidade do Rio de Janeiro. Depois, entrou para a polícia como comissário do Distrito Policial de São Cristóvão - pergunto-me se aí mora, ao menos em parte, no Direito e na polícia, a prevalência da retratação de crimes e personagens com perfis "criminosos", "foras da lei", mesmo de forma rude e, tome cuidado se for sensível, implacável. Ao mesmo tempo, era capaz de uma sensibilidade funda, um escritor de profundis (como no título do livro de Oscar Wilde a seu ex-amante Lorde Alfred Douglas, Wilde exilado na prisão por sodomia). Ou não retrataria personagens, cenários e situações com tamanha precisão, sem ser por demais hermético ou superficial.

O autor ganhou vários prêmios relevantes: Prêmio Jabuti, Prêmio Camões, Coruja de Ouro e até o Kikito do Festival de Gramado. E, embora tenha se destacado mais como contista e roteirista, os romances O caso Morel e Agosto não podem deixar de ser, primeiramente, citados. São obras absolutamente relevantes na literatura nacional.

Estou lendo O melhor de Rubem Fonseca - ainda não terminei. Os contos e crônicas são quase sempre extensos, nem por isso monótonos, muito menos, amenos. Não se engane com os olhinhos amendoados do velhinho colorido da edição da Nova Fronteira - Rubem Fonseca talhava as palavras, os costumes, a cultura, as personagens, os enredos, os diálogos, "a facão" - como dizemos no Rio Grande do Sul. Não de modo rude, mas de modo certeiro e munido de um impacto peculiar. Insisto nessa rudeza, nessa característica impactante e inexorável, com toda a sua simplicidade, porque me impressiona.

“As pessoas são infelizes, as ruas são esburacadas e fedem, todo mundo anda apressado.” 

   “Como gostaria de viver isolado num mundo utópico feito de amor e bondade.”

“Continue assim, enfrentando altaneiro a inveja e a insidiosa aleivosia dos pobres de espírito.”

— Rubem Fonseca 

Não tem medo de expor crimes brutais, traições, sentimentos e personagens pérfidos - às vezes, na literatura, os mais deliciosos - e o ridículo da sociedade, assim como suas rotundas injustiças, em geral de maneira sardônica - diz mais no diálogo, no ato, que no explicar, o que é sensacional.

Nos anos 1950, Rubem Fonseca chegou a ir estudar nos Estados Unidos, tendo completado Mestrado em Administração na New York University. Mas logo regressou ao seu país preferido, aquele que gostava de retratar com requintes de crueldade e ao mesmo tempo paixão - aliás, toda paixão é um tanto cruel, não? Acho até que Rubem Fonseca amava o tamanho do Brasil e se seu povo, que tanto conteúdo lhe forneceu para suas criações, que incluíram roteiros e argumentos no mundo cinematográfico.

Em 1958, exonerou-se da polícia e escolheu integralmente a Literatura. Seu livro de estreia, o oficialmente, foi Os prisioneiros, em 1963 (viés do policial já no título). Feliz Ano Novo teve grande repercussão, com contos "devastadores" (crimes, perfídias, mazelas) em 1975 - por isso, recolhido pelo regime militar e liberada, a obra, somente em 1989, após longa batalha judicial. Então o juiz e policial Rubem Fonseca teve mais do que nunca de entrar em ação. Agosto, romance (1990), mais uma vez cobre o mundo do crime concatenando-o com a política, livro adaptado pela TV Globo em 1993 com estrondoso sucesso.

Mas, se era corajoso e intrépido, por vezes até cruel nas palavras, por pura honestidade e talento, Rubem Fonseca era avesso a entrevistas, quem sabe de propósito, de maneira que se criou uma crosta de mistério ao redor de sua pessoa, amplificando a atração por suas obras: "Realismo feroz", assim é chamada sua obra. A última, datando de 2011.

Então, se quiser um pouco de emoção, realidade nua e crua - literalmente, por vezes - e Brasil brasileiro, leia Rubem Fonseca. O homem dos olhos dóceis, do sorriso complacente, que guardava em seu imenso bojo um coquetel de palavras cirurgicamente impressionantes.



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