A "sutil" arte de CANCELAR

Fonte: Pexels.

Dentre as inúmeras "gírias" que surgem nas redes sociais volta e meia - quase todo dia -, acompanhadas ou não de memes igualmente profícuos e muitas vezes de uma criatividade admirável, há um tempo temos o verbo CANCELAR. O título desse artigo, aliás, caso não tenha percebido, é ironicamente baseado no livro "A sutil arte de ligar o foda-se", best seller em que nos orientam a mandar tudo se ferrar, inclusive nós mesmos.

É verdade, "cancelar" é um verbo antiquíssimo na língua portuguesa; mas, agora, como muitas palavras e expressões - outras foram totalmente inventadas, como o estranho "crunge" - foi modificado. Cancelam-se pessoas. E, muita das vezes, por motivos, digamos, os mais superficiais possíveis. Basta que alguém influente "ordene", ou que um post "viralize" (ganhe o Brasil e até o mundo), de qualquer usuário, para que se cancele alguém ou alguéns. É a reação a um fato, opinião ou comportamento que condena, em geral de uma celebridade: CANCELÁ-LA. "Fulana está cancelada", "beltrana foi cancelada", "cicrana (é com "r" mesmo, embora fique meio estranho) CAN-CE-LA-DA. 

Os motivos podem ser vários, com frequência políticos, ideológicos ou oriundos de uma minoria (respeito às minorias, mas ódio não se combate com ódio, ah, essa fábula tão difícil de ser apreendida e tão pouco anos 2021). Afinal, em nosso país a maioria das pessoas têm sempre razão, como podemos observar, ainda que geralmente conheçam superfluamente as situações que julgam.

Julgar.

Hoje, todos nós adoramos julgar, aliás, desde os primórdios da raça humana com sua natureza humana que foi se "aprimorando". É muito bom julgar atrás de uma tela. Ah, uma delícia! E receber milhares de curtidas, compartilhamentos, aplausos, formando uma "horda de ódio"? Um êxtase somente reservado aos deuses - boa parte da nossa população digital assídua brasileira.

Não gostei de você, não gostei do que você fez, não gostarei nunca mais do que fará, vou cancelar você. Pronto. Tudo simples, como exige a praticidade liquefeita da "Modernidade Líquida" de Zygmunt Bauman (leia toda a coleção "líquida", vale a pena). 

Só tem um probleminha: quem é você, quem sou eu, quem é nossa "turminha do barulho" para cancelar alguém? E se cancelassem você? Motivos não faltam, nem todos pensam como eu, nem todos gostam de mim, nem todos "me engolem", e sou cheia (cheio) de defeitos. Entretanto, apenas EU posso cancelar, com minha entourage digital, às vezes incontável. 

Quando o ser humano se junta a outros seres humanos, ou desumanos, é fácil uma mentira virar verdade, uma verdade ser distorcida, alguém ser crucificado sem que se saiba realmente o que está acontecendo "nos bastidores". Queremos todos nos meter na vida alheia, mas na minha, ah, na minha mando só eu! 

Acho que muita gente já me cancelou. Não quero saber. Amar e mudar as coisas me interessa mais, e os que me querem bem e me amam, ainda que discordem em muitos pontos de mim, esses me interessam mais ainda. Eu? Quem sou eu para cancelar uma pessoa, ou um grupo de pessoas? Ainda que os fatos me pareçam absurdos. CANCELAR é praticamente MATAR em VIDA - outras pessoas, para si mesma(o). 

E, se você quiser me cancelar, esteja à vontade. O DEL do seu teclado não está no meu. Lembremo-nos que, de alguma forma, com a mesma medida com que julgarmos os outros, seremos julgados. Sua régua dá a volta ao mundo quantas vezes? 

Falta tolerância - não comodismo - e resiliência e compreensão e afinal paz. Estamos repletos de ódio, e viver odiando é a forma mais vil e preguiçosa de se viver - basta não focar nos próprios erros, mas observar os dos outros com uma lupa. 

Aliás, sobre gírias, para terminar: "crunge" é algo do passado, obsoleto, um "mico" das gerações passadas, não é isso? Então, acho que "cancelar" é MUITO crunge. Obsoleto. Inútil. Patético. 

Tenham um bom final de semana, reflitam, ninguém precisa apelar para provar seu valor e de sua opinião. 

E sobretudo, não se cancelem - esse é o único cancelamento com o qual devemos nos preocupar de verdade. 

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