10 minutos com Mr. Covid. (E com meu passado)

  



Fonte: Dreamstime

Este é um artigo estranho. Estranhíssimo. Talvez canhestro, quase tétrico. 

Aos extremistas, incompreensivos e incapazes de refletir, recomendo não continuar.

 Trata-se de um breve conto ficcional, ou semi-ficcional. Porque, em algum lugar, aconteceu.

 Encontrei Mr. Covid, o popular "coronavírus", que há mais de dois anos vem assolando nosso planeta, de ponta a ponta, de cima a baixo. Surgiu, ao acaso, em um mercadinho de vendas exóticas, nos morcegos devorados no espeto, dizem. Alguns falam em um laboratório altamente sigiloso, teorias da conspiração não exatamente descartáveis, a meu ver. O ser humano, como a História nos mostra, é capaz de tudo. Compete contra si mesmo. Fere o próprio planeta. Inventa suas doenças. 

 Bem, em uma modorrenta quinta-feira dia 23, véspera da Ceia de Natal, tive um encontro - marcado e contado no relógio - com Mr. Covid, que é invisível, a não ser no microscópio, a despeito de seus efeitos serem bem notáveis. Mr. Covid se materializou para mim em forma de um homem - já que é "o" Covid - com descendência chinesa ditatorial, em um uniforme com estrela vermelha na lapela do paletó, mas algo de um capitalismo norte-americano e Europeu, de um Brasil e uma América do Sul pobres e sem infraestrura na Saúde, na Economia, na sociedade arcaica. 

 Já foi batendo no relógio - um Rolex caríssimo, fabricado na China com trabalho escravo e vendido nos Estados Unidos. 

 - Então, senhorita Krüger. Faça suas perguntas, que não tenho tempo a perder. Minha família é grande, cresce a cada dia, e temos muitas coisas a resolver.

 - Sinto muito em "roubar seu precioso tempo", Mr. Covid. Gostaria de saber por que, há dois Natais e mais uns dias, o senhor, se é que devo chamá-lo assim, tem nos infortunado com sua súbita, incompreensível e mortal presença na terra.

Mr. Covid ajeita a gravata vermelha - cor do sangue que derrama - e o paletó italiano sob medida - matou muita, muita, muita gente na Itália, carregados como carne desprezível em caminhões do Exército sem ter onde velar e enterrar.

Mr. Covid pigarreia:

- Senhorita, você pelo jeito não conhece a História deste planeta. 

- O quê?

- Não sabe que, desde Caim e Abel, matam-se uns aos outros? E que, pela fortuna e poder, o homem é capaz de qualquer coisa? E se espanta comigo? Veja, a peste negra, até ela, veio por culpa da ganância do comércio, nas pulgas dos ratos dos navios chineses. Matou um terço da Europa e mais ou menos metade da Ásia. - Mr. Covid acende um cachimbo, parecido com o de Mr. Sherlock Holmes. Agora ele vai divagar de fato. - Então, vieram os colonizadores assassinos, as matanças entre os próprios índios e afrodescendentes em suas tribos bem antes deles, o capitalismo selvagem, o fascismo e o comunismo ditatoriais e assassinos...

- O senhor é comunista, e o comunismo matou e ainda mata milhares e milhares, mesmo mais que matou o nazismo. O senhor, como comunista-mor hoje, é o pai de todas as atuais ditaduras que são comunistas, senhor chinês de Wuhan!

- Comunismo, socialismo, fascismo, capitalismo... Não faz diferença, sabe? Vocês, humanos, estão sempre atrás de dinheiro. Apenas fui recrutado a, digamos, colaborar de alguma forma com o genocídio. Há tantos outros males! Sabia que tuberculose ainda é a doença que mais mata no mundo? Quem trata os tuberculosos na África, nas aldeias distantes da Ásia, da América do Sul? - Ergue as palmas das mãos, cheias de anéis de ouro e pedras caras. - Portanto, não venha me culpar. É verdade, não posso dizer que sou um bom ser. Que me preocupo com a humanidade. Que me detenho em matar, que me solidarizo com a tristeza das perdas....

"Mas você e todos vocês nunca foram o que Marx achou que fossem, pessoas boas, que se uniriam para dividir. Vocês são competitivos. Estou, sim, a serviço do sistema financeiro, do dinheiro, das grandes indústrias farmacêuticas, e dizimei mais onde já não havia preocupação com o povo, apenas com os bilhões dos políticos e magnatas. Aliás, alguns deles acabaram "pagando o pato", foram junto na "barca"..."

- Ok. O senhor, Mr. Covid, já falou muito. Só quero saber quando vai embora. E, afinal, não disse a que veio.

- Não disse a que vim?! Ora, vim como uma pequena parte da História sangrenta, corrupta, gananciosa e mentirosa de vocês! E, sabe, eu gosto de ser "O Astro". Antes, não era ninguém. Sabe que tenho centenas de "parentes" por aí, não sabe? Somos uma família. Estamos por toda parte. Mas, veja bem: não ensinamos mesmo nada a vocês? Não aprenderam o valor da vida, de cuidar da saúde, de quem dizem amar, de votar em políticos melhores, de ser mais humildes e menos gananciosos? Tem certeza?

- Apesar disso, a culpa é sua. Você tragou milhões de vidas e poderia tê-las poupado.

- Algumas teriam matado outras milhões de vidas, direta ou indiretamente, e eu...

- Deixa eu terminar - digo, olhando em seus olhos escuros, um breu. - Mr. Covid, o senhor pode me dizer sua origem? E quando vai embora de vez? É tudo o que me importa. Você está estragando nosso Natal.

Ele dá uma gargalhada.

- Estragando seu Natal. A maioria de vocês alguma vez teve um Natal decente, com perdão, amor, sem hipocrisia, essas coisas tão raras neste mundo? Desculpe por "estragar seu Natal". Vocês estragam seu planeta, os peixes comem toneladas de plástico e petróleo, seus relacionamentos, a vocês mesmos, vocês são egoístas, só pensam em si, e de repente, quando perdem alguém, ou a situação fica difícil, se enchem de ódio e só culpam os outros. Ou o "Mr. Covid". 

- Você é subtil. Foge à questão. Então, poderia fazer o favor de parar de se disfarçar ou "procriar" e ir embora logo? Já não nos "ensinou", ou adoeceu o suficiente, no corpo e na alma?

Mr. Covid se levanta, portentoso. Sua estrela vermelha na lapela brilha. Mas, no pulso, uma das maiores e mais caras marcas capitalistas em seu relógio. E atende a seu iPhone fabricado na Ásia com trabalho escravo comunista e vendido a preço de ouro puro pelos capitalistas.

- Sim, já estou indo. Desculpe o atraso. Vamos ter de rever esta estratégia. É simples. - Desliga.

Olha para mim. O que vejo? Mais que maldade. Um tipo de sinceridade insuportável; e, claro, falta de escrúpulos. Mas que escrúpulos tive eu, e tantos outros, tantas vezes? Quais me restaram? Divago, sem perceber. 

Acordo:

- Então, quando você se vai, Mr. Covid?! Deixe-nos em paz! Qual seu verdadeiro plano?

Mr. Covid dá um meio-sorriso.

- Vocês ainda não aprenderam o suficiente, não é? Nem as regras contra mim a maioria de vocês cumpre, pensam só em si mesmos. Debelam-se em ódio. Vocês ainda não aprenderam...

- O quê?

- O inferno são os outros, ora! Não somente eu. Jean-Paul Sartre me permita ir, tenho uma reunião urgentíssima. Ando muito ocupado. 

- Quantos milhões mais vão matar. Quantas vacinas e equipamentos médicos vão ter de inventar, vender, faturar... 

- Senhorita Krüger, vocês já matavam havia milênios, de diferentes formas. Direta ou indiretamente, e isso não lhe importa, vocês me criaram. Eu sou seu reflexo, o reflexo do seu egoísmo, da sua estupidez e usurpação. E, sabe? Eu matei e matarei menos que vocês!

- O quê?!

- É. Tem coisa que mata mais que o vírus, morte lenta e dolorosa, impiedosa e milenar... Falta de amar. 

Dá uma piscadela e some. Assim, do nada.

- Vá embora, Mr. Covid!!! - grito. Ele nem está mais ali. 

E um longo silêncio me segue. O silêncio de todos os que morreram, de Covid e de tristeza, e que morrem a cada dia. O silêncio daquilo que nos tornamos, como seres "humanos"... "Onde há mal, ainda mais mal há de vir, se a raiz do mal prevalecer...".

"O que estou fazendo contra Mr. Covid? É suficiente? E por quem amo? Mesmo pelas pessoas que precisam de alguém, de um sorriso, um elogio, uma amiga?"

"Se nem vou passar o Natal com minha família... se não falo com uma parte dela... se disse tanta coisa que não devia, e tanta que devia eu não disse... se Mr. Covid atacou meus pais, se levou um ente querido tão de repente..". A vida é o de repente. O aqui e agora.

E suspiro. Nunca a vida foi tanto um sopro:

"Acho que Mr. Covid vai embora quando aprendermos que o distanciamento que provocou, nos mostra o quanto já estávamos distantes antes...".

Mas que aroma é este que ele deixou? Como... rosas?

"Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa, da rosa de Hiroshima..." Ney Matogrosso cantando Vinícius de Moraes.  

E uma lágrima cai. Como uma pétala... 

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