Nietzsche e a vida livre (mas sem valor)

  

Friedrich Nietzsche. Fonte: Divulgação

Calma! 

Sei que muita gente aqui admira e até venera o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), considerado, quase que por unanimidade entre especialistas, "o pai do niilismo", ao lado de figuras como o também alemão Schopenhauer e, há quem diga, até o brasileiro Luiz Felipe Pondé, "o Nietzsche brasileiro". Venho aqui apresentar apenas um ponto de vista, embora o julgue bastante coerente, sobre a desvairada "adoração hedonista" a um homem que falou muito no "Super Homem", às vezes em coragem e autoestima, mas, sobretudo, desvalorizou a vida e o próprio ser humano.

"Humano, demasiado humano" é uma conclusão por certo coerente quanto à imperfeição da vida humana, mas, principalmente, pejorativa. Confesso que, dada a importância de Nietzsche dentro da Filosofia mundial, acho-o um sujeito supervalorizado, talvez muito notado pelas polêmicas e não raras incongruentes teorias. Considero Nietzsche, não sendo uma especialista em Nietzsche, mas conhecendo muitos que o têm como um totem, um "veneno" narcisista necessário a muitos, um abrigo na escuridão; mas, pelo niilismo onipresente, um negacionista prepotente, perdido entre questões existencialistas que tendem para a infelicidade e a insaciedade inevitáveis. 

Nem tudo em Friedrich Nietzsche, cujo próprio nome é difícil de escrever, homem cujas teorias são difíceis de coadunar com o infinito e a fé, para quem a vida é uma ilusão sem sentido, nem tudo nele é morte e desilusão. E há muito de Nietzsche no pensamento do autor (provavelmente o rei Salomão em sua velhice, desvanecido com si mesmo e os prazeres a que tanto buscou na mocidade) do livro bíblico de Eclesiastes: não há sentido em nada sob o sol, o homem é como vento, pó que vem e logo deixa de existir, o que vale a pena é trabalhar, usufruir do trabalho, comer e beber, amar e ser amado(a) no sentido do amor eros, sensual, mas cúmplice. Porém, afinal Nietzsche é um leitor desanimado, orgulhoso e resignado, debruçado sobre a própria vida e a vida em si mesma.

Ao mesmo tempo em que propõe a "liberdade do rebanho" aos prazeres, o "faça o que quiser", "desligue-se dos paradigmas", Nietzsche o faz como último recurso diante de um Nada Sem Sentido que acabará com a morte iminente. Não deixa de ser verdade que a morte é iminente, que temos tendências narcisistas atávicas, que há a complexidade de vida e morte, e de propósitos pessoais e supremos. Mas, me parece, Nietzsche simplesmente tapou a possibilidade do sobrenatural, de um deus, uma força superior cujo sentido não podia compreender e não podemos, em completude. Fez uma birra com o Universo.  

E é esta a atitude suprema de desvalorização à vida e à riqueza humana de Nietzsche que me incomoda: ter tapado não só o sol, mas o Universo, com o tampão de ceticismo narcisista e ao mesmo tempo vitimista. Como se aquilo que não pudesse compreender não pudesse ser ou existir, como se sua infinita limitação humana pudesse vislumbrar um "Super Homem" só para o tornar inalcançável, aumentar a resignação. A busca dos prazeres (bestiais, naturais) e a liberdade (racional), nem eles mesmos bastam ou têm sentido, ainda que tragam vida e movimento.

Não quero me estender. Como mencionei, é uma opinião pessoal. Nietzsche é um filósofo niilista, o pai oficial de todos eles, que nega o que não pode ver e saber, em uma atitude de extremo orgulho. Julga-se digno desta posição de árbitro do Universo e da vida, e de "matar" Deus por não o ver nem sentir. Nietzsche é anfitrião da festa racional da desvalorização da vida. E, quando proferiu "Deus está morto", estava dizendo: "Nietzsche está morto", dado que não conseguia se sentir, de fato, vivo, de uma forma que lhe valesse a pena e o salvasse do fim, para ele definitivo e humilhante, da morte.

E quem aceita não compreender, acreditar no que não vê, como muitas vezes diz Pondé, não passa de um "idiota". Ora, um idiota, para mim, é quem se nega a aceitar ou tentar compreender o que não compreende, ou não é passível de ser compreendido; quem prefere tampões a lunetas, o dúbio entendível ao óbvio inexplicável, a maestria da Ciência, que nem ela mesma é capaz de negar com provas verossímeis o sobrenatural ou explicá-lo: os cientistas e amantes do racionalismo devem deixar para o século XVIII dos iluministas arrasados com o rigor católico a luta não mais existente entre religião ou fé e Ciência. Esta luta, a meu ver, não é mais necessária, e Nietzsche foi um de seus pendores, como médico psiquiatra especialista no que se vê e se pode racionalizar e apenas isso.

Para mim, a vida é a mudança, é o inexplicável, inusitado, invisível, é corpo, alma, espírito, é o além do humano, e também o demasiado humano da natureza humana, são caminhos para as estrelas, não muros de pedra para incertezas. 

Sou idiota, Nietzsche, Pondé, Schopenhauer. Têm razão. Talvez a idiota do livro "O idiota" de Dostoiévski: boba, acredito fácil, erro fácil, mas, por outro lado, sinto-me viva outra vez sempre que morro, em vez de aceitar o Deus morto, a fé morta e eu mesma morta. Nós não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos (Anaïs Nin), não podemos ver um Deus, autointitulado à nossa imagem e semelhança, senão como nos vemos. Se Deus, ou os deuses, ou o sobrenatural e tudo o que você não consegue alcançar e explicar está morto, você sobremaneira está morto. E a suposta liberdade racional ou bestial humana não é um bom remédio, senão para "zumbis" vazios de sentido, e de uma ligação com algo maior que o próprio ego, vista em todos os povos da Antiguidade. O niilismo foi inventado.

Hoje, por exemplo, estou um pouco morta. Mas já quero reviver, já quero reinventar Deus, lutar para a chama da fé não se apagar, os ventos são gélidos e bravios e a vela é frágil, quero aceitar o que não posso modificar e fazer o que achava que não podia, mas posso e até devo, ou um dia vou poder. Nada nego a não ser o que acho certamente incoerente a partir do que sei e, principalmente, sinto. Sentir é, sempre foi maior que explicar, é para quem está vivo e quer estar. Negar é para quem está vivo dentro da própria gaiola, uma que nega pressupostos sociais e pessoais, mas os prende na desilusão niilista.

Desculpa, Nietzsche com seu grande bigode tapando a própria boca, o próprio ser, Schopenhauer e Pondé, e outros, mas o caminho sempre foi a humildade, a curiosidade, o aprender, o não compreender - e não apenas se resignar - e o acreditar no que não é compreensível. Este é nosso "demasiado humano". 

Pois, para que é que estamos aqui se não para acreditar e ter ou criar um sentido? Se não é para encontrar nosso propósito no mundo, se não é para acreditar que toda pessoa que nasceu tem um, ainda que possa nunca o descobrir? 

Nada nego, tudo posso viver. Só nego o que a tudo quiser, de forma sombria e orgulhosa, negar. Sou uma idiota para os semideuses, mas estou tentando viver e nem sempre entender.

 


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