A intolerância do brasileiro e o fim do homem cordial

 

 Fonte: Divulgação

*Adaptado de artigo de Leila Krüger para o jornal Gazeta do Povo.

O “homem cordial” que Sérgio Buarque de Holanda descreveu em Raízes do Brasil foi se enfezando, faz décadas. Foi deixando de ser dócil, deixando o samba, a praia, o pagode, “meu Brasil brasileiro”, “mulato inzoneiro”, “bamboleio que faz gingar”. Foi ficando cansado o tal “homem cordial”: cansado do próprio “jeitinho brasileiro” que se refletiu nos (des)governos. Cansado de ser explorado, de ser pobre, de ser incompreendido, de ser injustiçado, de se vitimizar, de não poder sonhar.

Foi ficando cansado o tal “homem cordial”: cansado do próprio “jeitinho brasileiro”, tão inofensivo a princípio, tão peculiar ao país "abençoado por Deus e bonito por natureza". A política atual, talvez, seja a maior expressão disso.

Enquanto isso, o homem não mais tão cordial aprendia a usar a Internet para dar voz a seus pensamentos e sentimentos, para encontrar seus semelhantes, para se sentir- mais forte. E também mais agressivo. Descobriu que havia também muita gente cansada, uma Nação inteira. Brasileiros cansados de ser gentis, de ser enganados, de ter de ser alegres como o brasileiro deve ser, e das palmeiras, do carnaval que amanhece cinzento, do sabiá e das aves que aqui gorjeavam, mas já não gorjeiam mais.

O Brasil está cheio de ódio. E não é só por causa da esquerda, da direita, das eleições, do fim do ano que se aproxima, das redes sociais, da pós-modernidade. Mil vezes não. O Brasil está cheio de ódio porque se tornou infeliz e se cansou de ser assim. E pessoas feridas ferem outras pessoas.

Mas, há esperança, a menina Esperança do poema de Mário Quintana, nos indica um caminho. Seus olhos verdes, verdes como a bandeira nacional. Há esperança de paz e mudança porque o brasileiro não desiste nunca, e isso não vai nem pode mudar.

Se o brasileiro vem utilizando sua persistência e criatividade para alimentar a intolerância endêmica, que tal começarmos, um por um, um passo de cada vez, um sorriso, uma gentileza, ouvir mais, falar menos, falar menos, fazer mais, aceitar ainda que não concordando, que tal começarmos a ter mais empatia?

"Somos todos irmãos, braços dados ou não", cantavam na época da ditadura, por que agora não somos mais todos irmãos, ou somos irmãos que se odeiam, sequer se compreendem, humilham ao mesmo tempo em que se vitimizam? Por que lutamos uns contra os outros. e não pelo fim da corrupção, do extremismo, do ódio, da hipocrisia, do egoísmo, da falta de hospitalidade? Como, por exemplo, ceder uma vaga de uma garagem de um prédio vazia a um pequeno automóvel de um visitante, quando há vários espaços desocupados. Como não cortar árvores do bosque ao lado porque "incomodam", sem consultar os inquilinos, pobres pássaros que perderam seus ninhos. Como não ajudar um pedinte na rua, não devolver um troco errado no mercado, não se perdoar nem perdoar, não elevar o tom, mas os argumentos, não simplesmente atacar uma pessoa, mas conversar sobre ideias e possibilidades. Não ser desonesto intelectualmente, atribuindo fatos e atitudes a ideologias pessoais. 

Enfim, a política muito reflete o que nos tornamos, governantes e povo, hoje em dia. Afinal, o governo é o reflexo do povo, diz o ditado. Então, sei lá, vamos começar aprendendo a nos tornar pessoas melhores, para votar melhor e ter um país - rico, lindo, de uma cultura vastíssima - que nos dê o orgulho expresso no Hino Nacional? Que nos una, e não separe? Vamos parar de proibir a bandeira do nosso país, e utilizá-la sempre como símbolo da nossa pátria? Vamos ser dóceis, mas politizados, conscientes e tolerantes? Ódio não se combate com ódio. Isso é guerra, e não queremos guerra. Ao menos eu não. Eu, eu quero algo que se perdeu em cada um de nós, pela pandemia, pela crise política e econômica, pela desigualdade histórica. Talvez isso se chame respeito, ou até amor ao próximo. Espero que seja isso.



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