Carta de uma "nazista" sobre a dívida histórica negra (afrodescendente) no Brasil

Fonte: Divulgação

Guardar rancor é, de fato, tomar veneno e esperar que o objeto de raiva ou desprezo morra. Errado, nos mata aos poucos. 

Então, não venho falar das dezenas de vezes em que fui e ainda sou chamada de "nazista" pelo simples fato de ter descendência alemã (esta parcial, junto à tcheca e russa, que muito sofreram com comunismo e nazismo), ou por minhas posições políticas e ideológicas que, a meu ver, passam longe da maldade.

Venho tentando, silenciosamente, compreender os direitos das minorias em nosso miscigenado e castigado país, resultante - e incrivelmente sobrevivente - de uma cultura de exploração barroca e não laica, e, quando laica, ainda assim preconceituosa. 

O "homem dócil" de Sérgio Buarque de Holanda não existe mais, o "jeitinho brasileiro" já virou sinônimo de malandragem no pior sentido e de corrupção, e a intolerância em suas variadas formas, entre o povo, é só o reflexo da fria hipocrisia maliciosa e egocêntrica dos políticos no poder, que, em uma democracia, vêm do povo. 

Gostaria de compartilhar com vocês trechos de um livro que estou lendo, O povo brasileiro (2014), de Darcy Ribeiro, primeira edição completa em 1994; o qual, creio, todos os brasileiros deveriam ler (apesar de cerca de 50% dos brasileiros não lerem nem mais que 1 livro por ano, e 80% serem analfabetos funcionais, conforme pesquisas oficiais recentes que, não por não me recordar quais, você facilmente encontrará no Google).  

A dívida histórica negra tem sido sim muito abordada, a batalha, renhida, em diferentes trincheiras como arte, a política, a Educação. E novos estandartes surgem, alguns pios e valentes, outros, aproveitadores - como em todo lugar e ideologia. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos negros e, oficialmente, 50% da população brasileira é negra - afora os miscigenados de brancos com índias (que geraram os primeiros "brasileiros", em sua identidade própria), negros com índios, esses todos mesclados a europeus de diferentes locais, a partir de, notadamente, portugueses, franceses e holandeses. 

Vejamos alguns fatos apurados por Darcy Ribeiro em sua clássica e imortal obra O povo brasileiro, em relação ao martírio enfrentado pelos negros (afrodescendentes - sinceramente, não vejo mal no termo "negro", se dito em tom de pureza ou por cultura). Lembrando que índios, mamelucos, mulatos e cafuzos, assim como mulheres, não tiveram sofrimento menos atenuado que os próprios negros, escravizados, tomadas as índias como meros repositórios de sementes de europeus brancos. 

"Não tem outra saída, entretanto, suma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. (...) seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. (...) Seu destino era morrer de estafa."

"'Deixam de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados'." (DAVATZ, 1941, p. 62-63).

"(...) partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar (...) o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo (sic), no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, do lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. (...) Outro comboio, agora de correntes, o levava a terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares (...) para trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar (...) até a exaustão."

"[sofria] todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma só vez, jogado nela para arder como um graveto oleoso."

"Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. [Quase] todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos."  

E assim, de tantas dores de parto (literal e metaforicamente), definhamentos e exploração, surgiu nosso povo brasileiro. Que, como muito bem, a meu ver, descreveu Ribeiro, fez com que:

"A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. (...) incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária."

Uma sociedade solidária, parida na suprema e sacrificial dor, da injustiça, da escravidão, da exploração (nem com todo o ouro que roubou do Brasil, e outras benfeitorias, Portugal deixa de ser chamada hoje ainda, na Europa, de "periferia da Europa"; talvez um tipo de castigo de quem nunca soube senão a exploração gratuita e incontida do próximo, desprezando o espírito empreendedor, nacionalista e cooperativo de nações realmente colonizadas, como Estados Unidos, Canadá e vários países da Europa).

Na América Latina, tivemos basicamente (mesmo nos Estados Unidos) o extermínio endêmico de escravos, índios e afrodescendentes, e seus descendentes, e depois foram "largados", sem identidade, para ter de criar uma própria, no Brasil, os primeiros brasilíndios, os primeiros brasileiros, o povo mais diverso do planeta desde sua descoberta, tão rico em potencial, mas destruído pela velha exploração e o desprezo ao semelhante, mesmo ao irmão de sangue.

Quero, antes de terminar a carta um tanto longa - e prefiro ainda as cartas escritas à mão, mão trêmula e pulsante, hesitante e entregue -, lembrar que não se combate ódio com ódio. Não diga que não temos tentado fazer isso, ainda que diante da égide verdadeira de que "pessoas feridas ferem pessoas"; mas, sobretudo, pessoas insensíveis e criadas em uma cultura maléfica e hipócrita, egocêntrica, narcisista, não laica, igualmente ferem pessoas. 

Dói-me tanto ser chamada de nazista quando falo do comunismo (que nunca deu certo em nenhum lugar e na atualidade), quanto deve doer ser chamado de comunista no caso de ter ideais benevolentes (embora o comunismo tenha matado cerca de dez vezes mais que o nazismo, e responda por todas as ditaduras no mundo atual); ou de "preto", "sujo", "macaco", "índio", "latino" (pejorativamente). 

Meus bisavós, ambos, fugiram do comunismo - na Rússia e na Tchecoslováquia, atual Polônia. Meus outros  antepassados, alemães, fugiram da Alemanha fim do século XIX e aqui tiveram de "abrir a facão" florestas virgens perigosas, construindo suas casas, hortas, pomares, igrejas, sua fé, mantendo a saudade da pátria que nunca mais a maioria deles veria. O governo, desde lá, não cumpriu suas promessas, de concessão de terras e ferramentas, eram entulhados em barracões e deixados à míngua. Mas, sobreviveram. Como as mulheres silenciadas, os negros, os índios e seus descendentes. Não que ainda não sofram as mazelas, as marcas indeléveis, em especial, indígenas, negros e suas proles.

Quase todos nós temos, etnicamente, uma dívida histórica. Nosso mundo sempre foi xenófobo, injusto, egoísta, ganancioso, como manda a corrupção propiciada pelo poder e a própria natureza humana não tratada. 

Mas, hoje, quero deixar minha assinatura na "Lista da Dívida Histórica Negra", como na Lista de Schindler que salvou tantos judeus, e outros alemães salvaram muitos perseguidos por Hitler e Mussolini e os comunistas do Leste Europeu e na Ásia, no anonimato.

Peço que não combatam racismo com acusações, quando insossas, de nazismo, elitismo, maldade. Há aqueles que lutam apenas pela humanidade, tão desumanizada. Não se esqueça de que vemos o mundo como ele é, olhos maus veem coisas más (Bíblia Sagrada).

"Somos todos irmãos, braços dados ou não", já diz a famosa canção. Acho que nunca fomos tão "desabraçados".

Então, amor é sempre a resposta, em forma de humildade, compreensão, afeto, guerra e cura. Guerra, sim, que muitas vezes custa caro alcançar a bonança, ainda mais na tempestade da natureza humana e dos rancores e saudades ancestrais. 

Boa semana, meus irmãos de todas as cores, raças, crenças e esperanças! 

 

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