Seja Você Mesmo e Não Viva Em Vão!

Fonte: Divulgação

"Civilizar minha vida é expulsar-me de mim." Certa vez, Clarice Lispector - que, é notório, é minha diva das Letras - mencionou esta frase. Então, fiquei "pensando aqui comigo mesma". Civilizar-se. Cumprir todas as regras de um cidadão "de bem". Da Lei, é certo ou ao menos aconselhável, mas, e da vida social, da sociedade, que reflete (ou oprime) a vida pessoal? 

Deixar de ser quem realmente sou. Descobrir-me, podendo cometer erros e chegar a ser o contrário do que sou para saber o que sou. Ser totalmente civilizada, dominada, amordaçada como foram os índios, escravizados e assassinados, e as mulheres utilizadas como repositórios de filhos de "colonizadores" europeus; como os afros, arrancados de suas terras e suas culturas, para ter o mesmo destino nas colônias dos países que mandavam no mundo. A maior parte deles manda até hoje, são os países de Primeiro Mundo, a cúpula internacional (exceto alguns que, com todas as riquezas roubadas, são nações praticamente pobres mesmo na Europa, como Portugal, que dilapidou o Brasil, aculturando índios e afrodescendentes). 

Falei acima sobre cultura (e desaculturação) e hábitos sociais forçados. Leis maliciosas para fortalecer poderosos e "dar de ombros", ou até "chutar" os mais pobres e as minorias, e até a liberdade de cada cidadão de ser quem é (sem praticar crime, claro). Ausência de leis incisivas, e não vagas ou com "politicagem", que dê liberdade a todos. Não apenas pela questão racial (que não se restrinja a negros e índios, há uma grande dívida, por exemplo, dos imigrantes que chegaram de navio no Brasil sem nada e nada do prometido pelo governo receberam, abrindo a facão florestas cheias de cobras e fins de linha: estou cansada de, apenas por ter origem alemã, sem que nenhuma de minhas atitudes ou palavras provem isso, ser chamada de "nazista" ou "fascista").

Sei, inúmeras leis a favor de Direitos Humanos e liberdade individual têm sido aprovadas no Brasil e no mundo, mas sabe como é, o povo... a cultura... as raízes... a tradição... até mesmo a corrupção, falam muito alto. Quer dizer, quem tem poder e dinheiro muitas vezes não é punido, ou pune quem não tem culpa. 

Quero querer e poder fazer como a personagem do último livro de Clarice, no ano de sua morte, A hora da estrela (1977): "Porque há o direito ao grito. Então eu grito". Muito nosso povo tem gritado por liberdade, prevista nas cláusulas pétreas da nossa Constituição Federal e nos Direitos Humanos internacionais. Porém, há ainda e sempre houve e haverá o grito, preso ou solto, do indivíduo, do ser, da alma. Do "ser quem se é", o grito interior de querer e poder viver. 

Ah, hoje quero esparramar Clarice por aqui. "Eu te deixo ser; deixa-me ser então", disse Clarice, e quantas coisas no mundo seriam mais alegres e pacíficas se a maioria das pessoas pensassem assim! Mas não. Como mencionei, temos a cultura... Nossa criação social (escolar, familiar, religiosa ou não religiosa), a sociedade que nos rodeia, cada vez mais globalizada, conectada, embora dividida em inúmeros grupos, muitos deles subdivididos entre si. Ou "lacrados" como caixas de tarjas fixas e inexoráveis. Por exemplo, o feminismo que vai muito além, ou nem passa, em certas correntes, pelo "cabelo roxo e sovaco cabeludo". Existem muitas correntes do feminismo, historicamente. Em toda filosofia ou grupo de pessoas, há os mais e os menos extremistas, os de centro, os renovadores...

Mas, em parte, eles, nós, temos motivos para colocar tarjas fixas e muitas vezes negras sobre certos grupos de pessoas ou comportamentos. 

É que a maioria das pessoas, de nós, não tem coragem de ser quem realmente são (não estou dizendo para chutar o balde, "enlouquecer", ou fazer tudo o que queremos), viver seus reais sonhos, relacionamentos, expressar suas ideias. É o que disse Clarice: "Ser feliz [livre internamente, não parecer nas redes sociais ou para o vizinho com a grama cada vez mais verde] é uma responsabilidade muito grande, pouca gente tem coragem". Um sopro de vida. Tantas vezes ela nos deu o recado. Ela, que, não se engane, sentiu-se sufocada, em sua infinitude e seu brilho, sua riqueza inatingível de alma e coração, poucas vezes compreendida, sua ideia primeira de liberdade e compreensão, mesmo da aceitação da condição humana: dor, alegria, dúvida, Deus.

Você já parou para pensar que, pior que não ter vivido, é nunca ter tentado viver e se arrepender aos oitenta, noventa anos? "De repente já são seis horas...", como no poema sobre a passagem relâmpago do tempo de Mario Quintana. A hora se ser feliz, de ser alegre - mesmo que triste às vezes - é agora, não se sabe o amanhã. A hora de se ser, de "mergulhar no que não conhece, como eu mergulhei" (Clarice), é hoje, é cada vez que você se levanta da cama, ou abre os olhos, e uma nova vida, não apenas um novo dia se inicia.  

É claro que nenhum de nós, absolutamente ninguém, vai ou pode realizar todas as suas vontades, sonhos e desejos em vida. Não terá permissão para isso, interna e externa. Porém, quero conclamar: porque há o direito ao grito, então eu grito! Grito por minha liberdade dentro de mim mesma, ainda que tenha minhas crenças, que não seja uma ilha selvagem isolada da sociedade, certamente eu posso gritar dentro de mim para que eu viva, e viva sendo quem sou em essência. Certas coisas grito ao mundo, outras, apenas para mim mesma.  

Tentando me tornar o melhor de mim, não o outro, a outra. Sou única. Se muitos não são, e apenas passam como espectros pelo mundo, eu não. Seria minha morte em vida. Já escolhi dar meu grito de "proclamação de liberdade". Mantenho a fé em meu Deus, tenho meus princípios, a maioria deles aprendidos não na igreja, mas na família e através da experiência e observação. Eu grito. Grito de tristeza, felicidade, sobretudo grito por liberdade. Está na Lei: a liberdade de cada cidadão ser quem é, pensar o que pensa, expressar-se. Cláusula pétrea.  

Gente frustrada e invejosa costuma ficar abafando seus próprios gritos, resignados a culpar o mundo e  cuidar e condenar as outras pessoas. Outros ainda abafaram quem são carregando culpas imensas, muitas vezes não cabíveis a elas de verdade. Cada um é responsável por suas escolhas, pelo que planta e colhe, e sofre a Lei do Retorno que é implacável. 

Ademais, por que suicídios, depressão e ansiedade estão aumentando, com tantos remédios, tratamentos, conscientização, informação, liberdade da Pós-Modernidade fluida? É porque, no fundo, não temos liberdade. Ou, então, não sabemos o que fazer com ela. Apenas gritamos, ou sufocamos o grito, e nada mais. Não há ação, coragem, muitas vezes tolhida por aqueles que nos cercam. Juntamo-nos a um grupo e imitamos os que fazem parte dele. Não fazemos questão de ser únicos, apesar de que se inspirar no outro faz parte de "se encontrar". 

Quanto vale sua curta vida - sejam vinte ou 120 anos - na terra? Quantas pessoas você vai agradar para se mortificar cada vez mais enquanto ainda respira? Quantas vezes vai virar a casaca porque todo mundo o fez, ou não vai virar por teimosia vendo que está do lado errado? Quantas vezes você vai culpar tudo, menos a si mesmo por não se ser? Eu sei, existe um preço alto a se pagar por isso. 

O que importa é que, em sua alma, em seu interior, em seus atos mais significativos e decisivos, você seja você, escolha por você. 

Ninguém pode agradar a todos. Nem Jesus Cristo o fez, como dizem. Aliás, quem tenta agradar a todos cai na falsidade e ainda desagrada a muitos. 

Então, viva. Desde que não prejudique, injustamente, outras pessoas, em especial quem mais ama.

Lembrando que, em todo processo de transformação, e mesmo após, a dor é componente da vida. Sendo quem você é, mesmo assim vai sentir dor, tristeza, vai se sentir perdido ou perdida de vez em quando, vai ter fases confusas e de recomeço. Mas, garanto, a vida será mais leve se você não tiver o arrependimento ou remorso ou rancor de não ter sido, feito, falado e vivido o que você é. 

Não sabe ainda, não tem certeza? Descubra. Esta é uma jornada interna, de solitude e até solidão, em direção aos lugares mais fundos do nosso coração, que muitas vezes nós tapamos em algum momento para não termos de nos enfrentar, quem sabe mudar, ou assumir nossas responsabilidades pelo que somos. Faça a diferença, porque cada um de nós nasceu único, mas a maioria vive como se não tivesse a coragem ou capacidade de o ser.


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